Eu fiz o Circuito do Vale Europeu, um percurso de caminhada de longo curso em Santa Catarina, em setembro de 2021, com um grupo de amigos. O percurso oficial do mochileiro (como os catarinenses chamam o peregrino) tem um total de 220 km. A historinha que vou contar a seguir foi muito especial nessa caminhada.
Quero deixá-la registrada para minha recordação e também para homenagear os amigos que compartilharam desses momentos comigo. Na época, o grupo de caminhantes ainda não tinha nome “oficial”, o relato a seguir quase deu nome ao grupo que estava se formando no whatsapp, que hoje se chama @caminhantesdocerrado, e engloba muito mais pessoas do que as que estavam no Circuito.
No meio do caminho havia um saruê
No sexto dia de caminhada do Circuito do Vale Europeu, tínhamos a missão de percorrer 33 km entre Dr. Pedrinho e Benedito Novo (SC), dia bastante desafiador. Só que a missão naquele dia foi um pouquinho além da esperada.
A missão daquele dia também foi um chamado da natureza ou do céus, não sei…. Avistei no caminho um serzinho indefeso, um filhote saruê, com a mamãe morta atropelada ao seu lado. Ele estava largadinho no caminho, quase imóvel, pronto para ser atropelado também ou morrer de frio em pouco tempo. Nós quase não o vimos, foi coisa de instantes, e um olhar mais atento, e vimos ele congeladinho de medo quase sob nossos pés.
Não aguentei deixá-lo lá para ser atropelado também, ficamos todos sem saber o que fazer, e eu em um rompante de “coragem”, ou sei lá o que, pedi um guardanapo para alguém e o peguei. Caminhei cerca de 5km com ele, mexendo, remexendo e chiando nas minhas mãos, ainda sem saber o que fazer. Os amigos do grupo perguntavam o que eu ia fazer e eu não sabia dizer, e ninguém também conseguia enxergar um caminho para a situação.
Em vários momentos do trecho eu pedia aos céus uma luz… Alguém que pudesse pegá-lo ali no caminho e lhe dar um leite, um abrigo, uma chance de vida… Uma chance muito remota, eu sei, dado que caminhávamos em área muito rural, pouquíssimo movimentada e ele se tratava de um bichinho selvagem.
Nós tentamos dar água para ele. Tentamos pedir ajuda em uma casa, a dona foi muito sincera e disse que não podia cuidar. Nessa casa, quase fomos atacadas por cachorríneos, amiga Rosilene e eu. Sufoco! Por ser uma área bem rural, desistimos de tentar procurar uma casa, parecia tudo pouco habitado. Embora houvesse construções no trecho, não vimos quase ninguém ao longo do percurso.
Quando eu já estava para desistir de salvá-lo (sim, eu quase desisti), a minha amiga anjo, Rose, o colocou no bolsinho ventilado lateral da sua mochila e concluiu nossos 33 km do dia com ele lá guardadinho. Aquele foi um dia de sol muito forte, muito sobe e desce no percurso e a necessidade de um trecho final em veículo 4×4 para viabilizar a chegada dos esgotados caminhantes na poupada de difícil acesso.
A mochila onde estava o baby saruê foi colocada no fundo do carro rural e eu fui tentando fazer o que podia para aquela vidinha não morrer esmagada no sacolejo de bagagens. Fora o momento em que a amiga Selma jurou tê-lo visto fora da mochila e se escondendo dentro do carro. Foram muitas emoções neste dia.
Eu não tinha mais esperança de que ele chegasse vivo depois daquele longo dia. Para nossa surpresa, ele chegou com vida e ainda conseguimos alimentá-lo um pouquinho. Quando percebi que ele havia sobrevivido e ainda tinha conseguido comer, entendi que a tarefa era nossa, e não de ninguém na estrada nesse dia. O vídeo de Ana e Carol alimentando o “ratinho” viralizou entre os grupos de amigos nesse dia…rsrs. Foi emocionante!
Dia seguinte no Circuito do Vale Europeu
Mais uma vez me surpreendi: ele amanheceu com vida. Oh, criatura de pouca fé! O baby saruê dormiu no quarto de algumas das amigas de caminho, em uma caixinha que arrumei com o pessoal da pousada. Digo que “dormiu” por força de expressão, pois as meninas relataram que ele chiou a noite inteira, não deixando as novas mamães dormirem!
Nós perguntamos por zoo, por secretaria governamental ou bombeiro, etc., qualquer lugar em que pudéssemos deixar o bichinho para ele ter chance de escapar. Era muito pequeno, impossível sobreviver sozinho na natureza ainda. Entretanto, não conseguimos nenhuma informação.
Duas amigas que estavam com os pés significativamente machucados e não puderam caminhar, seguiram de carro. Elas ficaram com o bebê, sem planos para ele ainda. Seguimos andando e deixando o universo mostrar um caminho… Ao longo do percurso do dia, lembrávamos de Stuart (foi até batizado pelo grupo), como ele estaria…? Depois constatamos que Stuart poderia ser uma menina, então talvez o nome não fosse adequado. Outros o chamavam de Ratatouille. O fato é que, independentemente do nome, ele estava em nossos pensamentos.
Caminho dos Anjos
Nesse dia, passamos pelo Caminho dos Anjos, trecho adornado por hortênsias e 63 esculturas de anjos de 2 metros de altura. Rose sugeriu uma caminhada silenciosa e meditativa nesse percurso.
Encontramos as amigas de carro paradas na réplica do Cristo Redentor que há no trecho, de frente para muitos anjos. Após algumas fotos, nós perguntamos pelo baby saruê… “Tá ali na van!”, respondeu Carol ou Alba. E a dona do carro de transporte, com um lindo sorriso angelical, nos informa que ficará com o bebê e tentará salvá-lo, e depois tentará solta-lo na natureza. Ela disse, ainda, que ama bichinhos e que tinha um grande jardim em casa. Eu quase agarrei a moça em uma abraço de tanta felicidade, mas me contive no agradecimento. Nós pedimos para Cíntia (dona da van e nova mãe de Stuart) enviar notícias do bichinho.
Voltamos à caminhada, Rose me diz que ficou arrepiada, e eu, chorei de emoção silenciosamente no restante do Caminho dos Anjos. Eu não sei se ‘resgatei’ ou salvei um saruê… Sei que o gesto não significou a salvação da espécie. Mas acho que, sim, resgatei minha fé nesse dia… e isso tem uma dimensão incalculável!
Nos dias seguintes, recebemos boas boas notícias sobre baby saruê. A mamãe Cíntia disse que ele estava muito bem cuidado, e até mandou fotos da mordomia dele.
Meu amigo Jesus, nos dias seguintes, me disse que quando me viu pegar aquele bichinho lembrou de uma música do Charlie Brown Jr, que diz “… ela é discreta e cultua bons livros, e ama os animais, tá ligado eu sou o bicho.” Que elogio mais sincero, Bendito Fruto entre as mulheres!
É, peregrinação vai muito, muito além das nossas expectativas e preparação (física ou mental). O pior, mas também o melhor, de cada um de nós, geralmente é revelado ao longo dos dias.
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3 Comentários
Adri, que relato emocionante. Sinto-me privilegiada por ter compartilhado com você, momento de grande emoção. Sim, nós amamos esse bebê.
Obrigada, querida amiga!
Foi uma caminhada muito rica e emocionante mesmo.
Bjsssss
Adri
Chorei lendo seu relato, cada vida importa e os anjos sempre aparecem! Que amor, Adri 💫