Devidamente descansados, iniciamos o segundo dia de trilha. Nesse dia encomendamos um lanche de trilha (viagem) no albergue (a maioria deles oferece o serviço): “chega de perrengue por falta de comida.” Andando pelas ruas de Les Contamines, dessa vez encontramos as placas de sinalização mais facilmente (na cara do albergue), na verdade, creio que o cansaço do dia anterior havia nos cegado.
Entretanto, já iniciamos o dia percorrendo o trecho que deveria ter sido feito no dia anterior, e que nos levaria muito próximo ao albergue (hoje, sem querer, recuamos um pedaço do caminho, andamos para trás… rsrsr). O bom foi que passamos por um lindo parque arborizado, com um rio de degelo esverdeado correndo em sua lateral direita, coisa que não havíamos visto. Não sei porque não tirei foto deste trecho, talvez por estar cheia de preocupação em passar os mesmos perrengues do dia anterior. O dia prometia uma longa ascensão até alcançarmos nosso destino do dia, e primeiro refúgio de montanha, o Refuge Du Bonhomme (2.479m).
A área de parque continuou por cerca de um quilômetro e foi gostoso de ver que a vila, rodeada de montanhas, respira atividades outdoor. Muitos moradores locais caminhando, um trecho todo sinalizado, com entradas para trilhas em todas as direções, áreas de camping, camping para motorhomes e a bela igrejinha de La Gorge (1.210m): ah, deu vontade de morar ali: que privilégio viver em um lugar assim! Tudo bem, no inverno deve ser bem difícil, mas deixa a gente com o sonho de que existe um lugar perfeito no mundo.
Logo no início da subida, em um caminho largo de pedras, encontramos muitos trekkers e até um ciclista empurrando uma bike com pesados alforjes. Ele me perguntou, não sei em que língua, mas entendi (acho que é a linguagem universal do “socorro – perrengue”..rs), se o trecho era todo complicado assim e eu disse que pelo meu guia enfrentaríamos uma subida quase constante. Não sei qual era o destino/plano dele, mas ele estava bem enrolado com aquela bicicleta. Não sou nenhuma especialista no cycle world, mas já li relatos de que o Tour Du Mont Blanc não é muito indicado para bikers. Esse foi o primeiro e único ciclista que encontramos nos trechos montanhosos em 11 dias de trilha.
Nesse trecho de pedras usei a técnica do zig-zag para subir. O artifício aumenta um pouco a distância, mas suaviza bastante a sensação de subir, ele faz a inclinação ser menos perceptiva. Sempre falo para Emerson (meu marido) seguir na frente, no ritmo dele. Ele se desenvolve muito bem em subidas, e diminuir o ritmo para me acompanhar acaba o cansando mais. Mantemos uma distância segura (visual) entre a gente e assim respeitamos a necessidade e ritmo de cada um.
Embora em constante subida, o trecho seguia de forma gostosa: muitas paisagens lindas, vários refúgios e cabanas pelo caminho. Encontramos fontes de água (geladinha) bem adornadas. Um caminho cênico, cada trecho mais lindo que o outro ou melhor, cada qual com sua beleza. Havia lido no guia (sempre lia sobre o trecho na noite anterior), que poderíamos encontrar bolsões de neve nas montanhas hoje, mesmo estando no verão. Ainda não tive a oportunidade de ver neve caindo, sei que era muito improvável no verão, mas vê-la no chão já seria uma alegria (embora já tenha visto no Atacama e na Patagônia). Para quem só saiu do Brasil depois dos 30 anos de idade (Argentina aos vinte e poucos não conta…rsrs), tudo é motivo de festa, de descoberta, de experiência, e adoro que seja assim. Que vida chata (para não dizer uma palavra mais fétida) deve levar o tipo de pessoa blasé, aquela que já “viu e experimentou tudo no mundo” (no entender dela), que não se surpreende com mais nada. Deve ser muito sem graça uma vida sem encantamento, principalmente com as coisas mais simples do mundo.
De novo fomos agraciados com um dia lindo: paramos para fotos, paramos para lanche, paramos para observar vaquinhas de montanha, fomos ao banheiro (ao que parece em um refúgio de emergência) e mais e mais montanhas se aproximavam. De longe, já dava para ver que encararíamos uma ascensão mais puxada até chegar à famosa Croix du Bonhomme, mas o trecho estava lindo e com muitos trekkers em ambas as direções. E também corredores de montanha (o TMB oficialmente é um percurso onde é realizada a famosa ultramaratona que tem o mesmo nome). Estávamos próximo da data de início do evento oficial no ano, então havia muitos corredores fazendo seus treininhos básicos em todo percurso.
Enfim chegamos a um bolsão de neve. Foi só alegria, muitas brincadeiras, muitas fotos, embora ainda faltasse um bocadinho de subida até a tal da cruz (Croix). Hoje o cansaço realmente era mínimo em relação se sensação de aproveitamento de cada trecho, estava um dia muito mais suave.
Em termos de distância e altimetria, não foi um dia menos difícil que o primeiro, mas certamente foi mais leve… Leveza de espírito, acho que eu estava entrando no clima da jornada. De forma semelhante ao dia anterior, sentimos bastante calor durante quase todo o percurso, mas ao se aproximar do Col do Bonhomme (2.329m), a temperatura começou a cair muito. No Col havia um pequeno abrigo de emergência, vários trekkers sentados em volta: descansando, fazendo um lanche, fotos e aproveitando o que, certamente, é umas das vistas mais amplas e belas do TMB. Também fizemos nossa parada para lanche, contemplação e fotos.
Com algumas trilhas em volta, indo e vindo de várias direções, meus olhos de navegadora iniciaram a busca pela trilha que devíamos pegar. Ela estava à esquerda e parecia seguir atrás de montanhas, e eu não conseguia ver onde ia dar. Continuamos o Tour, seguiam-se mais vistas espetaculares a partir de outros ângulos. Ah, é por isso que estou aqui!
Seguimos em um terreno mais pedregoso, onde foi mais difícil identificar a trilha, havia algumas pedras pintadas, mas por vezes geravam dúvida de qual caminho seguir. Entretanto, com a grande movimentação de gente naquele trecho, esse fato não gerava grandes preocupações. Logo chegamos à Croix du Bonhomme, de lá era possível ver um Refúgio: uau, que localização!!! Vamos dormir nas montanhas!
Uma dificuldade que constatamos no local foi relacionada à limpeza. Havia um banheiro do lado de fora, para o pessoal do camping e para quem estava de passagem, no qual Emerson se arriscou a usar logo que chegamos, mas ele não conseguiu passar da porta para dentro. Outro pedacinho com cheiro desagradável era a área reservada para guarda das botas. Precisávamos deixar os calçados em uma área separada, nos fundos, e calçar as sandálias crocs disponibilizadas para transitar na área dos quartos. Isso em uma tentativa do refúgio de manter o ambiente interno mais asseado possível. Encaro tudo isso com muita tranquilidade, meu histórico de peregrina e de viajante low cost já me ensinou a me desprender de muitas dessas situações. Relax!
Para mim o Bonhomme é mais uma cabana do que um refúgio, não entendo bem como se dá essa classificação, mas acredito que originalmente se tratava de um refúgio, cuja estrutura teve que ser aumentada, dado o aumento do trânsito de pessoas ao longos dos anos.
É lugar super movimentado: trilheiros e corredores de passagem só para um café, outros para acampar em volta e outros, como nós, para se hospedar. Ressalto que, a exemplo de outras hospedagens de montanhas, a reserva para dormir lá tem que ser feita com bastante antecedência.
Após a fila do banho, e o próprio banho, saímos para varanda para olhar a paisagem, mas a temperatura estava caindo desesperadamente, foi impossível ficar mais que 5 minutos do lado de fora. Sentamos no bar/restaurante do lado de dentro, para deixar o tempo passar até o horário do jantar. Tentei providenciar a encomenda de lanche para o dia seguinte, mas no caso deles, deveria ter sido feita por telefone, com antecedência. Por se tratar de um refúgio, com difícil acesso, o provimento é bem mais custoso, então todo o planejamento de alimentação precisa ser muito bem programado. Acendeu uma luz de preocupação: será que passaríamos perrengue sem comida no dia seguinte?
Enquanto isso, o tempo lá fora fechou, uma névoa cobriu tudo em volta e não podíamos mais ver quase nada além de uns 5 metros. Parecia nevar, mas era algo tão fino que não posso afirmar. Fiquei imaginando o frio que faria para quem estava em barraca. As pessoas começaram a apontar em direção a um trecho mais no alto, há uns 50m da cabana, eram dois alpine ibex (não sei o nome em português), equivalente a uma cabra, mas com dois grandes chifres curvados. Um típico mamífero daquela região. Lindos! Fotos não tiramos, simples celulares não captariam quase nada com aquela pouca visibilidade. Apenas apreciamos! Agradeci silenciosamente mais aquele presente do dia.
Realizado em 15 de agosto de 2019.
[blockquote align=”none” author=”Elza Nack”]A leveza da alma floresce o nosso coração, colore os nossos olhos e dá asas aos nossos pés..[/blockquote]
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2 Comentários
Oi. A reserva nos refúgios é feita antecipadamente pela internet? Qual o gasto diário em média para fazer esse caminho? obrigada
Olá, Adriana. Tudo bem?! Sim, a reserva precisa ser feita antecipadamente, especial na alta temporada. Em 2019 o gasto médio da hospedagem foi em torno de 56 Euros a diária.