Eu decidi fazer o Caminho da Luz como forma de “treinar” para o Caminho de Santiago de Compostela, que eu faria no ano seguinte, em 2016.
O Caminho da Luz foi criado em 2001, se inicia no município de Tombos, em Minas Gerais, mais precisamente em uma cachoeira localizada na cidade, e é finalizado no Pico da Bandeira (2.890m), o terceiro ponto mais alto do país, já na divida com o estado do Espírito Santo. Em breve publicarei um artigo com todas as informações para quem deseja fazer o Caminho da Luz, por enquanto vamos para minha história.
Convidei diversos amigos para fazer essa caminhada comigo, mas por ser um período de festas (semana do Natal), acabei indo sozinha. O que foi ruim e foi bom ao mesmo tempo. Vocês entenderão ao longo da história. Eu precisava muito fazer essa preparação, para depois poder encarar os 30 dias de caminhada na Espanha (ver dificuldades, avaliar mochila, corrigir erros, etc.). Um amigo também já havia feito o Caminho da Luz sozinho e me encheu de coragem para ir mesmo sem companhia.
Pesquisei bastante e acabei encontrando o melhor apoio por meio da Rastros de Luz, uma agência especializada no caminho. Escolhi o pacote referente apenas à inscrição com credencial e às reservas de hospedagens e alimentação; sem guia, nem carregamento de bagagem. Planejei o percurso para ser feito em 7 dias, totalizando cerca de 180km, incluindo o Pico da Bandeira.
Eu costumo dizer que essa foi umas das maiores loucuras da minha vida de trilheira. Eu fiz o caminho completamente sozinha, não havia nenhum peregrino fazendo os trechos combinados com os mesmos dias que eu. Não foi algo programado, até sair de Tombos no primeiro dia, eu não sabia que seria a única peregrina naquele período. Eu sabia que havia esse risco, mas deixei isso para a vontade dos céus e o encarei mesmo assim.
Logo no primeiro dia, eu errei na quantidade de água, ainda não conhecia a dinâmica do percurso, se haveria apoio, etc. e, naquele dia, eu cheguei nos primeiros 12km (de um total de 25km) com apenas 250ml de água. Sem nenhuma fonte próxima ou na expectativa nos quilômetros seguintes, assim, fiz a loucura do dia: mesmo tendo muito medo de vacas, atravessei a cerca de uma fazenda para pegar uma água totalmente suspeita no cocho de vaquinhas. Minha fé estava nas pastilhas de clorin (potabilizador a base de cloro orgânico) que eu levava, o qual usei em dose dobrada naquela água extremamente ameaçadora…rs. Eu tive que tirar uma foto daquele lugar, para não esquecer da situação (como se fosse possível); eu não sabia se ria ou se chorava do feito.
Providência dos céus, nos 500m seguintes, encontrei uma fonte de água e não foi necessário beber do líquido amarelado que eu carregava comigo. Mais para frente, o caminho ficou duvidoso em certo trecho. Não encontrava a sinalização, muito menos rastro do caminho. Havia vegetação derrubada por alguém ou pela chuva. Fiquei pelo menos meia hora procurando o caminho a seguir, ou alguém que pudesse me informar. Depois de achar, encontrei um córrego, que pareceu mais um oásis, onde pude me refrescar do calor escaldante e do suor do medo de morrer de sede que havia passado nos momentos anteriores. Nessa brincadeira, perdi meus óculos escuros. Foi mais meia hora procurando-os e voltando trechos na tentativa de achá-los. Nada! Adeus!
[blockquote align=”none” author=””]Já tá bom de perrengue por hoje, né, céus? [/blockquote]
Mas o dia reservava mais. Como mencionei rapidamente, tenho muito medo de vacas (bois, touros e afins), e sei de onde vem o trauma: das histórias de mamãe sobre as vacas bravas que ela enfrentava lá da roça quando era jovem. Pois é, nesse dia encontrei um boi no caminho, ele resolveu sair do pasto por uma abertura de cerca e quando quis retornar eu já estava me aproximando. Ficamos os dois um com medo do outro, ele não vinha e eu não ia. Que minutos de terror! Era um caminho largo, mas eu já estava com o plano B de pular a cerca caso ele viesse para cima de mim. Depois de alguns, longos, minutos, nós dois resolvemos nos enfrentar: eu passei correndo indo e ele vindo também. Acho que foi a primeira vez que chorei. Chorei de alívio e de dúvida: o que estou fazendo aqui?
Houve mais alguns eventos marcantes envolvendo cavalos no cafezal e uma jovem vaca, mas não vale a pena encher os post com cenas de fobia a essa criatura de Deus, e considerada sagrada por alguns.
Certo dia eu entrei em um trecho muito estranho, bem desabitado mesmo, onde o mato havia crescido muito. Claramente não passavam caminhantes ali há várias semanas. Atravessei uma espécie de túnel, depois veio uma casa abandonada (já sem telhado pela ação do tempo). O coração acelerou, era realmente um trecho meio assustador. Para concluir a cena, havia um ou dois cavalos lá dentro, que ao se mexerem quase me matam de susto. Em seguida, a trilha que seguia me pareceu ficar mais assustadora, talvez pelo efeito da adrenalina e das cenas vividas momentos antes. Eu andei muito rápido, muito rápido mesmo nesse caminho, eu me arrepiava.
Logo cheguei em uma parte que o mato estava tão grande, que ultrapassava minha altura e fechava o caminho. Tive que ir olhando para o chão e abrindo espaço com os bastões para enxergar minimamente a trilha ali. Após passar esse pedaço, cheguei em uma bifurcação, mas não via placa nenhuma para qual sentido o caminho seguia. Se eu errasse ali, acabaria chegando em alguma fazenda que não era a rota e teria que voltar um bom pedaço. O que não é algo muito legal para quem tem mais de duas dezenas de quilômetros para andar por dia. Peguei o celular e, mesmo sem sinal, tentei me localizar no precário mapa off line. Não fiquei completamente segura, fui pela intuição da direção que eu deveria seguir e continuei em frente. Cerca de 1km depois, o alívio: vi uma sinalização indicativa do caminho.
Raramente eu encontrava pessoas no caminho (exceto quando chegava no local de dormir), tanto que 99% das minhas fotos foram selfies, não havia a quem pedir. Confesso que aproveitei pouco no quesito contemplação da caminhada, estava focada em seguir a sinalização, em me cuidar, em não deixar faltar água: atenção, atenção! E o caminho é lindo! Mas ao mesmo tempo, eu podia mergulhar nos meus pensamentos e sentimentos. Eu só podia conversar comigo mesma, só podia ouvir a mim mesma, ou a uma força superior que eu não pudesse enxergar.
E o medo? Eu procurava não pensar nele, não pensar nos perigos e seguir. Eu sentia medo mesmo quando chegava na pousada/hospedagem e alguém dizia: “Nossa, como você é corajosa“, aí eu sentia medo..rsrs. Era tanta coragem assim? Quais os perigos que me cercavam? Na verdade, alguns. Por isso não recomendo que você faça isso e eu não faria novamente. Os riscos não estavam relacionados à violência (acho que esse era o menor dos riscos, já que não encontrava praticamente ninguém), mas sim os riscos relacionados a qualquer atividade desse tipo, como: me ferir e não ter alguém por perto para pedir ajuda, me perder a tal ponto de não chegar a um lugar seguro antes do anoitecer, encontrar com bichinhos selvagens que, mesmo sem maldade, pudessem me machucar. Para minimizar isso, todos os dias eu avisava a minha família qual era meu percurso do dia, quilometragem, previsão de chegada e, quando tinha algum sinal de celular, mandava notícias no meio do caminho.
Entretanto, enfatizo que essa não é uma realidade dos caminhos em geral. Comumente podemos encarar diversos caminhos no Brasil e mundo sozinhos(as), e mesmo assim nunca estaremos só, já que sempre há muitos peregrinos nos trechos. Esse foi um caso muito específico, atípico. Fui em uma semana totalmente fora de temporada para esse tipo de atividade, mas era o tempo que eu tinha disponível.
No penúltimo dia, não suportava mais o peso da minha mochila. Essa foi umas das principais lições do treino, carregar o mínimo possível. Eu também sentia dores terríveis nas costas, depois vim a perceber que a minha mochila estava totalmente desregulada no meu corpo. Mas só percebi isso em outras ocasiões de uso dela, sofri o caminho inteiro por conta desse erro de principiante. Gostaria de contar muitos outros causos dessa peregrinação, mas não me lembrarei exatamente de todos e nem do dia exato de cada um deles.
Quando cheguei a Alto Caparaó, fiz questão de contratar um guia, pois, pelo menos o Pico da Bandeira eu não subiria sozinha. E foi quando eu encontrei uma pessoa que valeu por várias que não encontrei pelo Caminho, o Sr. Josias. Um guia, nativo, muito humilde, que me guiou ao terceiro ponto mais alto do Brasil. Nos sentimos tão à vontade um com outro, que no meio do percurso ele tirou as botas e foi descalço, pois era assim que ele se sentia bem e livre. Disse que alguns não consideravam aquilo profissional, mas ele nasceu explorando tudo aquilo com os pés no chão, e assim andava melhor.
Não tenho muito que falar sobre essa parte, fico sem palavras, falta sabedoria: como nos empacotamos de proteções, tecnologia, em nome da segurança, do “profissionalismo”! Roupas, calçados, meias, poncho, bastões, bandana, GPS, rastreador… Não que seja errado, mas muitas vezes nos esquecemos da coisa mais importante: a conexão com a nossa fonte. Conexão com a mãe Terra! O respeito! Sr. Josias sabia bem o que era isso. Nunca me esqueci do nome dele.
Ao chegar ao Pico da Bandeira, o tempo fechou. Começou a chover. Tivemos que iniciar a descida rapidamente. Senti um pouco de frustração! Parece que aproveitei pouco do caminho, foram muitos perrengues, medos e tensão, e nem o Pico da Bandeira colaborou… Hoje acho que não! Quanta coisa eu aprendi naqueles dias completamente sozinha… Quantas áreas das minhas emoções eu pude acessar naqueles momentos? Sentimentos que talvez eu nunca tivesse explorado ou soubesse que existiam. Quanto aprendizado do que fazer e não fazer? Quantos valores eu internalizei a partir dali? Muitas coisas!
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4 Comentários
Olá Adri, obrigado por compartilhar sua jornada pelo Caminho da Luz, estou em fase de preparação e suas experiências serão muito úteis para mim! Gratidão sempre!
Oi! Fico muito feliz, Wemerson!
Qualquer dúvida, pode entrar em contato.
Bom Caminho!
Abraços,
Adri
Oi! Estava pensando em fazer o caminho sozinha, mas depois de ler seu post rsrsr Eu queria mesmo ir sozinha, mas tenho medo exatamente dos problemas que você citou que poderiam acontecer. Bom também saber que não tem sinal de internet. De repente faço com um grupo desconhecido e procuro ficar mais isolada. Preciso estar só nessa caminhada…
Eu não faria de novo…rsrs. Faço em outros lugares, com outras pessoas fazendo. Sozinha total serviu de experiência. Bjssss